Explicando o epílogo de "Formation". Como o vídeo e a letra da Beyoncé resume e fecha TODOS os aspectos apresentados nos capítulos anteriores do "Lemonade".
(Fotos: Reprodução / Parkwood Entertainment)
"Formation" é a faixa final do álbum "Lemonade". Diferente dos vídeos anteriores presentes no álbum, esse clipe não se inicia com um poema. Ele serve como um epílogo, um resumo de tudo que foi abordado no álbum. Na verdade, seguindo a lógica de lançamento, serviu como uma prévia. Esse artigo foi construído de forma a apresentar os detalhes do vídeo, que podem ter passado despercebido por você, e de forma a explicar como o clipe se insere no álbum.
A primeira coisa que preciso comentar, diz respeito à data de lançamento da música. "Formation" foi lançada antes de todo o álbum "Lemonade" no dia 6 de Fevereiro de 2016. Esse é o mês de celebração da história negra nos EUA.
A data também bate com o aniversário de Trayvon Martin e Sandra Bland, pessoas negras que MORRERAM vítima de brutalidade policial no país. Trayvon Martin morreu em 2012 depois de ser baleado por um policial de vigilância do bairro, que seguiu e o atacou por considerá-lo "suspeito". Em 2015 e início de 2016, uma série de protestos estavam acontecendo em resposta aos escândalos envolvendo a brutalidade policial.
Já Sandra Bland morreu na prisão da cidade de Waller em Julho de 2015, TRÊS dias após ser presa em SUSPEITA de agressão, depois que uma tropa policial do estado a deteve por não sinalizar uma mudança de faixa. O fato reacendeu e muito o debate sobre a importância das vidas negras.
Toda essa introdução se faz necessária para explicar o contexto em que "Formation" foi lançada. Mike Will, produtor da música, informou que Beyoncé queria trazer a ideia da cultura de Nova Orleans para dentro da canção. Partiu dela, a ideia de adicionar as fortes batidas e populares à cidade em questão, no refrão. "Formation" abrange TODOS os tópicos com os quais Beyoncé lida no restante do álbum, desde a brutalidade policial, o movimento de empoderamento negro, a subversão dos papéis de gênero, sua ancestralidade, origens, irmandade e ênfase na representação de indivíduos afro-americanos. Nova Orleans é usada como plano de fundo de todo o "Lemonade" e já no início do vídeo, temos as cenas da cidade arrasada pelo furacão Katrina em 2005. Pra quem não sabe, 80% da cidade ficou submersa e completamente inundada. A inundação afetou principalmente a comunidade negra, que foi completamente abandonada pelo governo. Por isso, o vídeo abre com Messy Mya gritando: “O que aconteceu em Nova Orleans?”. Mya também foi vítima de violência policial e morreu aos 22 anos. Confira a compilação original abaixo, com as vozes de Mya, utilizadas no clipe.
O empoderamento negro explícito na letra da música, abriu margem para a construção do que viria a seguir na história do álbum. No momento em que a Beyoncé canta: "Meu PAI do Alabama" e em seguida: "Minha MÃE da Louisiana", quadros rápidos são expostos no vídeo. Nestes quadros em questão, tanto o pai, quanto a mãe da personagem (Beyoncé) são descritos como pessoas da realeza, pessoas poderosas. Não temos aqui a representação batida e hollywoodiana do negro escravizado e trabalhador de plantações, incapaz de promover mudança. A própria personagem demonstra ser alguém "importante".
Não somente a personagem principal aparenta ser da realeza, mas todos os negros e negras ao seu redor possuem essa característica. Como ela cita na letra da música, "Eu posso ser um Bill Gates negro em construção!". É o sonho americano que também aparece em "Daddy Lessons". Ao longo do vídeo, uma série de DIFERENTES personagens são mostradas dançando, na igreja, em eventos, passeando, de forma a revelar que pessoas comuns negras viviam - vivem - em Nova Orleans e foram completamente esquecidas pelo governo e autoridades durante o Katrina. A cena do garoto levantando a mão em frente aos policiais com a frase "pare de nos matar" está lá por uma razão.
A menção faz parte do Movimento de Michael Brown, que tomou conta dos EUA com o slogan: "Hands Up, Don't Shoot (Mãos pra cima, não atire)", em resposta à onda de violência policial contra os negros no país.
Um outro aspecto social que aparece no vídeo de "Formation" e em demais partes do "Lemonade" diz respeito ao 'Mardi Gras Indians', um "carnaval negro" característico de Nova Orleans, onde pessoas se fantasiam e saem as ruas. É influenciado pelos nativos americanos. A afirmação do amor à cultura negra vai se construindo durante todo o vídeo, quando a Beyoncé fala que ama o cabelo afro da filha dela, quando cita que ama ser uma Texas "BAMA" e aparece cenas do time de basquete, ou quando ela cita seu carro 'El Camino', comprado com seu dinheiro.
Não posso deixar de citar que enquanto Beyoncé canta "eu sonho, trabalho duro, luto até conseguir", vemos simultaneamente um homem segurando a cópia de um jornal chamado "The Truth" (A verdade), onde a capa é uma fotografia de Martin Luther King com a legenda "More Than A Dreamer".
Referenciando o discurso de 1963, "Eu Tenho um Sonho", Beyoncé lembra ao público que o que antes era um sonho se tornou realidade. Apesar do racismo ainda prevalecer nos EUA, a "Lei dos Direitos Civis de 1964" e os "Direitos de Voto de 1965" foram sim aprovadas em resposta à luta constante. Nas palavras da própria diretora do vídeo, Melina Matsoukas:
Formation mostra em sua mensagem que triunfamos, sofremos, estamos nos afogando, sendo derrotados, dançando, comendo, mas acima de tudo, ainda estamos aqui!
Vários outros aspectos valem ser citados, como o empoderamento feminino criado pela Beyoncé no vídeo e em todo o álbum, além da constante citação dos 'haters' como "albino alligators (jacarés de pele branca)" que sempre tentaram derrubá-la enquanto mulher negra. O clipe se encerra da mesma forma que se inicia. À medida que a música acaba, podemos ouvir um áudio do “Trouble the Water” (2008), um documentário sobre as consequências sociais do furacão Katrina: “Garota, eu ouço um trovão / Golly, olha aquela água, garota, oh senhor.” O afogamento da personagem junto com o carro de polícia de Nova Orleans só demonstra de forma metafórica, as consequências de toda a tragédia, o abandono e o desrespeito com a população.
Finalizo essa análise, dizendo como é importante ver uma pessoa como a Beyoncé preocupada em mostrar histórias como essa, em sensibilizar e inspirar através da arte, em compartilhar diferentes pontos de vista, muitas vezes esquecidos e em cultivar acima de tudo o respeito À HISTÓRIA. Obrigado por acompanhar até aqui.
Texto: Arthur Anthunes
Revisão: Lucas Cranjo
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