Como Beyoncé representou o matriarcado utópico e a luta contra o racismo em "Freedom". Entenda a letra, o clipe e as referências dentro do "Lemonade".
(Fotos: Reprodução/Parkwood Entertainment)
Continuando com a análise sobre o "Lemonade", após "Forward", somos levados para a faixa "Freedom", essa que é a décima música, presente no capítulo "Hope" (Esperança). Nesse momento da obra, mais uma, vez Beyoncé introduz o capítulo com um poema de Warsan Shire. Porém, pela primeira vez ela recita o poema completo.O poema em questão se chama “Nail Technician as Palm Reader" e TODA a concepção do vídeo se baseia no entendimento dele. É possível entender inclusive o motivo pelo qual Beyoncé utilizou a imagem ao lado para anunciar a "Formation Tour", como veremos a seguir.
Iniciando essa análise, é preciso mencionar a aparição de um bebê no frame inicial do vídeo de "Freedom". Nós só conseguimos entender a presença dele com o decorrer do poema.
Beyoncé começa o vídeo recitando o poema de Shire e mais uma vez voltamos ao ambiente feminino de época, já mencionado anteriormente. Aqui, temos a primeira referência do vídeo, que diz respeito à produção "Daughters of the Dust", um filme independente de Julie Dash, de 1991. As personagens de "Freedom" são todas inspiradas nesta obra. No filme em questão, nos é mostrado como as raízes africanas foram mantidas em algumas comunidades na América. A história de três gerações de mulheres de uma família é contada por um bebê DENTRO do ventre de sua mãe. Neste cenário, é possível observar vários elementos do filme em questão, no "Lemonade", não somente nas vestimentas, mas no conceito e representatividade em si. Inclusive recomendo que vocês assistam essa produção.
Outra inspiração para o clipe de "Freedom" veio da obra "Beloved" (Amada), da escritora Toni Morrison. A autora, foi a primeira escritora negra a ganhar um Nobel de Literatura em 1993. O livro em questão, foi ganhador do Prêmio Pulitzer e talvez seja sua obra mais reconhecida. "Beloved" tem uma narrativa difícil pois não segue uma linearidade, um fato depois outro fato. A narradora conta algo, pensa algo, lembra algo, tudo isso de forma misturada e sua histótia é baseada num fato real, ambientado em 1873, época em que os Estados Unidos começavam a lidar com as feridas da escravidão recém-abolida.
Ao longo do poema nos é apresentado a "esperança" das "filhas e netas", ou seja, das futuras gerações de mulheres, que continuarão lutando para colocar um fim a todas as formas de opressão das mulheres (negras). Na segunda estrofe, a personagem descreve um sonho bastante surrealista e cheio de imagens perturbadoras, onde a voz poética dá à luz através de uma "fenda" no estômago.
A técnica de unhas empurrou minhas cutículas para trás ... virou minha mão, esticou a pele da palma da mão e disse: "Eu vejo suas filhas e as filhas deles".Naquela noite em um sonho, a primeira garota surgiu de uma fenda no meu estômago. A cicatriz se curou com um sorriso. O homem que eu amo tira os pontos com as unhas. Deixamos suturas negras enroladas no lado do banho. Acordo e a segunda garota rasteja de cabeça na minha garganta, uma flor que vai florescendo pelo buraco de minha boca.
Através de uma análise complexa, a personagem descreve o nascimento de duas crianças. A primeira nasce como o resultado doloroso e biológico. De uma forma surreal esse nascimento é comparado ao ato que as manicures fazem nas unhas das mulheres, polindo e dando novas formas. O curioso é que o amante é descrito nesse nascimento como aquele que ajuda a fechar as feridas do parto COM AS UNHAS. Ele não é mais retratado como um personagem negativo, mas como um amante solidário. A personagem inclusive cita o "nós" pra descrever sua relação.
Apesar da dor física envolvida, enquanto a mulher dá à luz através da fenda no estômago, o amante permanece ao seu lado (tanto física quanto emocionalmente), e ele até puxa os pontos. Tudo isso se realiza num sonho. A primeira criança nasce num sonho. Até que a personagem acorda e a segunda criança nasce. O segundo o nascimento da menina é apresentado literalmente como um despertar ("eu acordo enquanto a segunda menina rasteja"). Enquanto a primeira garota "emergiu"do útero, a segunda garota rastejou. Ou seja, ela lutou tentando se mover para fora até sair da garganta da mulher "até a cabeça", para finalmente FLORESCER na boca da personagem. Aqui nos damos conta que não estamos falando de um nascimento físico. Mas sobre a NECESSIDADE de se manifestar perante a dor. O capítulo da "esperança" é sobre isso, uma espécie de matriarcado utópico representado por mulheres de diferentes de cores, de várias idades e estilos de vida que lutam. Esse poema ecoa como o despertar da Beyoncé enquanto feminista e ativista da justiça social. Justamente por isso, a Queen B escolhe a imagem com a flor em sua boca para anunciar e levar a mensagem de força com a "Formation Tour".
De forma objetiva, o nascimento doloroso da primeira criança diz respeito ao momento que a Beyoncé toma conhecimento das dores do passado, das injustiças, da maldição citada em momentos anteriores do álbum e o nascimento da segunda criança é o seu ato de se MANIFESTAR. Não por acaso, temos aqui a música "Freedom", que talvez seja a canção mais forte de todo o "Lemonade" justamente por carregar essa mensagem necessária, de quebra de um ciclo.
Todas as mulheres em torno da mesa descrita no clipe, mostram que a união feminina é capaz de mudar o futuro. Existe até mesmo a simbologia com a árvore que cerca o capítulo, cada personagem num galho, seguindo seus caminhos, de diferentes formas, mas UNIDAS por uma força maior. É a constante luta contra o racismo e contra toda e qualquer forma de opressão.
Outro ponto, é que as mulheres se reúnem para prestigiar um show, neste espetáculo Beyoncé pede por liberdade e toda a mensagem do vídeo se desenrola com muita facilidade e clareza. Como diz a letra: "Iremos continuar lutando, porque vencedores nunca desistem de seus sonhos!" Por fim, compreendemos que o bebê que aparece no primeiro frame do vídeo representa o NASCIMENTO da liberdade e da esperança em si.
Muito obrigado por ler, clique aqui para seguir para o próximo capítulo com "All Night".
Texto: Arthur Anthunes
Revisão: Lucas Cranjo
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